O Cabo Verde conquistou um feito histórico ao garantir sua inédita vaga na Copa do Mundo de 2026. A celebração tomou conta da nação insular, que tem menos de 600 mil habitantes e se tornou a segunda menor país, atrás apenas da Islândia em 2018, a alcançar o torneio.






Uma Nova Independência em Campo
A conquista veio 100 dias após as celebrações dos 50 anos da independência do país. No Estádio da Várzea, o mesmo palco onde a bandeira cabo-verdiana foi hasteada pela primeira vez em 1975, multidões se reuniram para festejar com os jogadores que haviam assegurado a Vitória decisiva por 3 a 0 contra Eswatini, cinco milhas adiante, no Estádio Nacional.
O Estádio da Várzea, que já sediou partidas da seleção nacional e a Copa Amílcar Cabral em 2000, foi o centro da festa. Uma multidão acompanhou o jogo em telões do lado de fora, e um palco foi montado para a celebração, que contou com a presença dos jogadores após um breve período no hotel.
A torcida invadiu o gramado, e alguns atletas se juntaram a artistas locais no palco, cantando e dançando até tarde da noite. Fogos de artifício iluminaram o céu após a meia-noite. A maioria dos presentes era jovem, já que o governo optou por não decretar feriado nacional, apesar de rumores e comparações do presidente José Maria Neves à conquista de uma “nova independência”.

O Papel Crucial da Diáspora
O feito histórico, selado na última rodada das Eliminatórias Africanas para a Copa de 2026, quebrou a tranquilidade habitual de Praia, cidade conhecida pelo seu ritmo mais calmo. As autoridades locais liberaram os trabalhadores mais cedo para que toda a capital pudesse apoiar os “Blue Sharks” na busca pela glória.
“O Dia da Independência e 13 de janeiro de 1991 – quando as primeiras eleições multipartidárias foram realizadas – são as duas datas simbólicas que uniram nosso povo”, disse José Maria Silva, diretor Nacional do protocolo de estado. “Esta classificação para a Copa do Mundo já pode ser considerada o terceiro momento definidor de nossa nação.”
Para um povo que tende a manter as emoções sob controle, a ansiedade era palpável antes da partida. Bandeiras de Cabo Verde adornavam varandas, bares e carros, mas a atmosfera permaneceu contida. Quinze mil torcedores entraram pacificamente no Estádio Nacional, inaugurado em 2014 e financiado pela China. A tensão era visível até o apito inicial.
O primeiro tempo sem gols e a dificuldade em furar a defesa de Eswatini esfriaram os ânimos. No entanto, o Gol de Dailon Rocha Livramento, três minutos após o intervalo, liberou um rugido contido pela torcida, que crescia desde a vitória sobre Camarões no mês anterior, fundamental para que Cabo Verde terminasse em primeiro no grupo. O atacante, emprestado ao Casa Pia, da primeira divisão portuguesa, apontou para o pulso, sinalizando que era hora de ir para a Copa do Mundo, como já havia feito contra Camarões.

Os gols de Willy Semedo e Stopira intensificaram a celebração. A conquista foi impulsionada pelo papel crucial de jogadores da vasta diáspora cabo-verdiana, frequentemente chamada de a “11ª ilha” do arquipélago. Sem a contribuição de cabo-verdianos espalhados pelo mundo – que superam a população residente e representaram 14 dos 25 convocados nas últimas duas partidas –, a classificação seria inviável.
O processo de recrutamento de jogadores binacionais começou por volta de 2002, impulsionado por Lito, um ex-atacante que emigrou para Portugal e fez mais de 200 jogos na primeira divisão lusitana. Ele foi fundamental para convencer outros jogadores de origem cabo-verdiana a defender a seleção nacional.
A rede de jogadores da diáspora se expandiu além de Portugal, alcançando França e Holanda. Rotterdam, em particular, abriga cerca de 23.000 descendentes de cabo-verdianos e contribuiu com seis jogadores para a seleção atual, incluindo Livramento, o artilheiro do time nas eliminatórias com quatro gols.
Identidade e Profissionalização: A Chave do Sucesso
Cabo Verde, marcado por secas severas, escassez de recursos e oportunidades limitadas, experimentou diversas ondas de migração. Hoje, os filhos da diáspora responderam ao chamado de sua terra ancestral, trazendo alegria sem precedentes aos corações de seus compatriotas.
“Poder retribuir os esforços de nossos avós e pais, que emigraram para nos dar um futuro melhor, às vezes trabalhando em dois empregos simultaneamente, é o mínimo que podemos fazer”, disse Livramento.
A integração dos jogadores da diáspora com o elenco local foi fundamental. O técnico Pedro Leitão Brito, conhecido como Bubista, focou em fortalecer a identidade cabo-verdiana, personificada por veteranos como Vozinha e Stopira, que iniciaram suas carreiras no campeonato semiprofissional local, com salários médios de €200 a €300 mensais.
“A unidade entre pessoas com diferentes mentalidades e estilos de vida só pode ser alcançada respeitando a singularidade de cada jogador”, afirmou o treinador.
Vozinha, o goleiro titular, e Stopira, que entrou no final contra Eswatini, jogam na segunda divisão portuguesa. Outro titular na partida está na mesma divisão, e o capitão Ryan Mendes atua na segunda divisão da Turquia. Os demais oito titulares da partida jogam em clubes da primeira divisão em Portugal, EUA, Emirados Árabes Unidos, Irlanda, Romênia, Rússia, Holanda e Chipre.

Bubista construiu sobre o legado de seu mentor, João de Deus, enfatizando o uso do crioulo para fortalecer um grupo maduro e coeso.
“É a língua oficial da seleção”, explicou Bubista. “Alguns jogadores falavam apenas inglês, mas agora aprenderam crioulo. Às vezes, eles tentam falar outras línguas entre si, mas eu não permito, para manter nossa identidade cabo-verdiana intacta.”
A crescente profissionalização da Federação Cabo-Verdiana de Futebol (FCF), apesar dos recursos limitados e uma equipe enxuta, foi outro fator crucial. Gelson Fernandes, ex-jogador suíço nascido em Cabo Verde e diretor da FIFA, destacou essa evolução.
“Eu me profissionalizei cedo demais”, disse Fernandes. “Naquela época, a FCF não estava pronta. Hoje, Cabo Verde é representado na FIFA, e apoiamos totalmente a FCF, que agora é capaz de se organizar.”
O apoio financeiro, um obstáculo comum para nações africanas menores, foi fundamental. A FCF recebeu suporte para cobrir os custos de viagens internacionais, como a deslocação à Líbia, que custou cerca de US$ 400.000.
Os US$ 10,5 milhões que a FCF receberá ao chegar à fase de grupos da Copa do Mundo impulsionarão suas finanças e permitirão a construção de um sistema de observação mais estruturado para identificar talentos na diáspora. O objetivo é elevar o nível dos “Blue Sharks” e, um dia, atrair jogadores do calibre de Nuno Mendes, para que a bandeira nacional seja representada em campo por ele, e não apenas exibida após suas conquórias por outros clubes.
Fonte: The Guardian